FUNDO DE FINANCIAMENTO ESTUDANTIL (FIES) PARA O ENSINO SUPERIOR PRIVADO NO CENÁRIO BRASILEIRO – DE 2010 A 2014

Resumo: O texto é uma síntese de uma pesquisa de mestrado que se insere na discussão sobre o financiamento da educação no Brasil, especificamente sobre o Fies. O objetivo é o de apresentar, ainda que sumariamente, o Fies no cenário educacional brasileiro, de 2010 a 2014, considerando a relação econômica-comercial-estudantil estabelecida entre os diferentes sujeitos, veiculação na mídia, número de contratos firmados, inadimplência dos alunos versus adimplência nas IES privadas. O Fies, legalmente, e não obstante amparar-se nos princípios de igualdade, equidade e justiça social, traduz, contraditoriamente, um estratagema poderoso capaz de garantir trunfos políticos, além do enriquecimento econômico dos empresários do ensino, à custa do endividamento de muitos alunos que aderem ao programa.

Palavras-chave: financiamento da educação no Brasil; fundo de financiamento estudantil; ensino superior privado.


INTRODUÇÃO

O ensino superior privado é parte do discurso e da agenda estatal, como pôde ser observado na constante atuação do Estado (poder público federal/União), nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014), no sentido de viabilizar as condições institucionais, sejam políticas, legais ou econômicas para alavancar o desenvolvimento das empresas do ensino superior privado. Das condições de viabilização propiciadas pelos governos é possível mencionar os atuais programas de bolsas e financiamento, com destaque ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Como política de expansão para o ensino superior, o Fies ganhou evidência no cenário governamental primeiro pelo crescente aumento da demanda por vagas nesse nível de ensino. Segundo, especialmente por contribuir no cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014 – decênio 2014-2024 –, composto por 20 metas, das quais destacam-se a 12 – estratégias 12.5, 12.6 e 12.20,  a 14 – estratégia 14.3 -, e a 15 – estratégia 15.2 – , pois têm o Fies como uma de suas estratégias. Por esses motivos, o Fies é objeto de apreciação no texto que se segue.

FUNDO DE FINANCIAMENTO ESTUDANTIL: NOTAS INTRODUTÓRIAS

O Fies é um programa do governo federal, de natureza social – também contábil e econômica –, que tem por princípio, ao menos conforme propõe a lei, incentivar, apoiar e promover o acesso e a inclusão de jovens, principalmente àqueles hipossuficientes economicamente, ao ensino superior em instituições privadas. 

Foi criado no governo de FHC, pela Medida Provisória (MP) n.º 1.827 de 27 de maio de 1999, atualmente lei n.º 10.260, de 12 de julho de 2001. Faz parte de uma série de medidas adotadas após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), na gerência de FHC. Nos dois mandatos de Fernando Henrique, a produtividade e a eficiência das instituições privadas foram argumentos presentes na opção política de estímulo à iniciativa privada na expansão de vagas, sendo o Fies um dos resultados dessa política.

Os governos presidenciais do Partido dos Trabalhadores (PT), com Lula, sucedido por Dilma Rousseff, em decorrência do aumento pela busca de vagas em nível superior por todas as camadas da população, principalmente pela classe com menor nível de renda, e da crescente pressão sobre o fundo público por parte dos empresários do ensino privado (JACOB, 2011), deram continuidade à política do Fies. Em 12 de julho de 2001, a MP n.º 1.827 converteu-se na lei n.º 10.260, posteriormente alterada pelas leis n.º 11.552/2007 e 12.202/2010.

O programa ganhou grande destaque no mandato Dilma Rousseff, sendo que nos três primeiros anos desse governo os empréstimos ativos tiveram uma expansão de mais de 400% em relação aos anos anteriores, e o orçamento destinado ao programa teve uma alta nominal superior a 315% entre 2011 e 2013, passando de 1,8 bilhões para 7,5 bilhões (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR, 2014).

PROPOSTA DO PROGRAMA E RELAÇÕES ENTRE AS PARTES INTEGRANTES DO FINANCIAMENTO

Em teoria, a proposta do Fies, como programa social, veio com o intuito de contribuir com o desenvolvimento do cidadão, da sociedade e da nação, como preconizado na Carta Magna Brasileira, com destaque aos dispositivos, a seguir mencionados: artigo 205: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; artigo 170, garantir a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano” tendo como fim, “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados dentre os princípios:” a redução das desigualdades regionais e sociais e a realização do pleno emprego (inciso VII e VIII); e ainda, artigo 3º:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1988).

Tendo como pano de fundo os princípios sociais aludidos, o Fies é destinado à concessão de financiamento estudantil em nível superior a alunos, principalmente, de baixa renda. Para se candidatar, o aluno deve estar regularmente matriculado em IES não gratuita, em curso superior de graduação presencial – não é permitido para cursos na modalidade à distância – que tenha avaliação positiva nos processos avaliativos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Entende-se por avaliação positiva o curso que obteve conceito igual ou superior a 3 (três) na realização mais recente do processo avaliativo Sinaes, sendo que os não avaliados podem ser habilitados, excepcionalmente, para concessão do financiamento, a critério do Ministério da Educação (MEC). 

Para formalização do financiamento, é assinado um contrato de abertura de crédito, entre o aluno e o agente financiador, com juros estabelecidos e prazos determinados para quitação. A contratação do financiamento é efetuada, em geral, por meio da própria IES, que precisa ser conveniada ao Fies, sendo o pagamento referente à mensalidade repassado diretamente à faculdade ou universidade.

A relação do aluno com o Fies, considerando a natureza contábil e econômica do programa, é estabelecida por meio da assinatura de um contrato do estudante com o banco (agente econômico), não cabendo ao contratante (aluno) qualquer discussão, alteração ou decisão sobre as cláusulas do contrato a fim de alterá-las de maneira que melhor possam atender às suas reais necessidades e condições econômicas. Como estabelece Cláudia de Lima Marques, o contrato do Fies, como qualquer outro acordo de adesão, trata-se de um dispositivo “cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte, sem que o outro parceiro possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito” (2005, p. 71).

Nessa relação, em que a educação é vista como uma commodity, o aluno ganha o status de cliente. Um consumidor do saber que financia a compra de um serviço: o ensino. Como cliente-consumidor deve honrar com o que foi estabelecido no contrato: iniciar a amortização do contrato celebrado com agente financeiro (Caixa Econômica Federal ou Banco do Brasil) no 19º mês subsequente ao da conclusão do curso, sendo que o saldo devedor pode ser parcelado em até três vezes o período financiado do curso, acrescido de 12 meses, ou seja, se o curso tem 4 anos, o aluno poderá pagar o curso em 12 anos: 3 x 4 (período do curso) = 12 anos + 12 meses (acréscimo) = 13 anos (além da carência). Durante a fase de utilização e o período de carência há a obrigatoriedade de pagamento, a cada trimestre, no valor máximo de R$ 50,00 (cinquenta reais) referentes a juros incidentes sobre o financiamento.

A taxa de juros efetiva do Fies atualmente é de 3,4% ao ano para todos os cursos, observadas as amortizações pelo Sistema Francês de Amortização, Tabela Price, sistema no qual

são calculados juros sobre juros, mensalmente a uma taxa anual. Fato que pode induzir os estudantes beneficiados pelo Fies a erro, já que a prestação, inicialmente pequena, rapidamente tem seu valor aumentado de forma drástica. Isso porque esse sistema faz com que primeiro sejam pagos essencialmente os juros, não o principal da dívida (VIANNA, 2006, p. 12).

O agente econômico, observadas as determinações legais, é o prestador de serviços na concessão do financiamento, ou seja, é o fornecedor do crédito de modo a favorecer a consolidação do consumo; o governo federal, por meio do Fies, é que provê os recursos, sendo que, constituem receitas do programa conforme artigo 2º da lei n.º 10.260 de 2001:

I - dotações orçamentárias consignadas ao MEC; II - trinta por cento da renda líquida dos concursos de prognósticos administrados pela Caixa Econômica Federal, bem como a totalidade dos recursos de premiação não procurados pelos contemplados dentro do prazo de prescrição, ressalvado o disposto no art. 16; III - encargos e sanções contratualmente cobrados nos financiamentos concedidos ao amparo desta Lei, IV - taxas e emolumentos cobrados dos participantes dos processos de seleção para o financiamento; V - encargos e sanções contratualmente cobrados nos financiamentos concedidos no âmbito do Programa de Crédito Educativo, de que trata a Lei no 8.436, de 25 de junho de 1992, ressalvado o disposto no art. 16; VI - rendimento de aplicações financeiras sobre suas disponibilidades; e VII - receitas patrimoniais. VIII – outras receitas.

Submetido ao regime do direito privado, o Fies mantém com as IES privadas, e vice-versa, também uma relação de mercado. As IES constituem-se em organizações que prestam serviços educacionais tanto aos alunos-clientes-consumidores quanto ao Fies, recebendo, deste último, dinheiro público pelas vagas preenchidas. A verba é repassada pelo governo por meio de títulos da dívida pública e o setor privado administra os recursos. É a responsabilidade social privatizada no processo de produção do serviço educacional.

O FIES NA MÍDIA

Após o boom das matrículas privadas entre 1995-1999 “o setor educacional foi afetado por uma crise [...] não havia mercado, com renda, para comprar o serviço educacional”. Necessário, deste modo, o resgate das instituições privadas que “dar-se-ia em nome do interesse público. Tratava-se de democratizar o acesso ‘aqui e agora’, ainda que financiando as instituições privadas” (LEHER, 2013, p. 31) e fomentando a mercadorização da educação.

Nesse resgate das IES privadas, como apontou Chizzotti, “o acirramento da competição pelos clientes do ensino superior ganhou dimensões insólitas com o ingresso de grandes fundos financeiros nacionais e internacionais na disputa pelo rendimento decorrente das mensalidades, incentivado, no Brasil, graças às condições ultravantajosas do Fies” (2014, p. 4). Condições ultravantajosas que ajudam a impulsionar, a dirigir e a guiar a expansão do setor privado instigando um público consumidor que ajuda a manter o mercado aquecido.

Para instigar esse público e de olho na possibilidade de lucro, as empresas educacionais fizeram uso de estratégias certeiras. Bastava caminhar pelas ruas, folhear as páginas de revistas e jornais ou navegar pela internet para encontrar o constante apelo “de venda” do Fies exposto em frases e jargões como:

para quem não pode pagar uma faculdade particular e não conseguiu entrar em uma faculdade pública o Fies é uma alternativa para financiar o curso;

 o sonho existe, a força de vontade e a dedicação também, mas a preocupação, em alguns casos, é viabilizar essa oportunidade. Em situações como essa vale a pena buscar informações sobre uma alternativa interessante e acessível, o Fies, uma possibilidade segura, sem maiores burocracias, de financiar o futuro;

 você já imaginou ingressar na faculdade pagando apenas 50 reais a cada três meses? Com o Fies, isto é possível;

estude por apenas 17 reais por mês durante todo o curso.

Considerando que durante a fase de utilização e a fase de carência do Fies o aluno paga uma trimestralidade, referente a juros, limitada a R$50,00 (cinquenta reais) por trimestre, a propaganda soa como o anúncio de promoção da operadora Vivo:

por pouco menos de 1 real por dia, o cliente terá direito a 100 minutos em ligações para celulares Vivo de todo o brasil, Sms ilimitado para clientes da operadora e 75 Mb de dados.

Na comparativa, cursar o ensino superior por meio do Fies e levar um diploma é tão fácil e acessível como 100 minutos em ligações para celulares, pois, basta guardar R$0,56 (cinquenta e seis centavos) por dia ou R$17,00 (dezessete reais) mensais para cursar uma faculdade e levar um diploma. Simples, barato e sem grandes exigências de uma vida financeira estável e confortável: ‘só não estuda, quem não quer’ mesmo que não se tenha o dinheiro da condução, do café ou um lanche, ou do ‘pão de cada dia’.

O Fies configura-se também interesse do governo que por meio do bordão “com o Fies dá”, alimentava exaustivamente, em diferentes meios de comunicação, o sonho de milhares de brasileiros e de brasileiras de que agora é possível e fácil fazer qualquer curso em uma IES privada, haja vista o estudante poder contar com “uma série de vantagens e facilidades para financiar o curso que quiser”.

O interesse do governo pode ser iterado também no fato de que

os estudantes que se formarem em cursos de licenciatura e medicina e optarem por atuar como professores da rede pública de educação básica (com jornada mínima de 20h semanais) ou como médicos do Programa Saúde da Família (PSF) em especialidades e regiões definidas como prioritárias pelo Ministério da Saúde, poderão abater 1% da dívida a cada mês trabalhado. O estudante que, ao ingressar no curso de licenciatura, já estiver em efetivo exercício na rede pública de educação básica terá direito ao abatimento da dívida desde o início do curso (BRASIL. MEC. FNDE, 2012, p. 57).

Oferta que se torna, dentre outros fatores, um importante incentivo ao aluno, um mecanismo de subsistência das IES privadas e uma valiosa ferramenta política do governo, como marketing de formados e de metas cumpridas.

ASCENSÃO DOS FIÉIS DO FIES, DA INADIMPLÊNCIA DOS ALUNOS E ADIMPLÊNCIA NAS IES PRIVADAS

A partir do primeiro semestre de 2012 assistiu-se um crescimento exponencial de adesão ao Fies. Observava-se um aumento corrente e significativo do número de alunos, em geral de baixa renda, que ingressavam em diferentes IES privadas, em sua grande maioria, por meio Fies, e também um número cada vez maior de IES que aderiam ao programa, conforme tabela a seguir:

Tabela


Evolução de adesão das IES e contratos Fies - 2000 a 2014

Exercício

No. Total de IES privadas

No. de IES conveniadas ao Fies

No. de novos contratos firmados

2000

1.004

605

102.501

2001

1.208

704

48.856

2002

1.442

919

65.808

2003

1.652

1.029

59.525

2004

1.789

1.105

43.610

2005 2005-2009 – a queda no número de contratos firmados pode ser pensada em decorrência dos seguintes fatores: implantação do Prouni em 2004, oportunidades de financiamento oferecida por instituições bancárias e financiamento e bolsas de estudos oferecidas pelas próprias IES.

1.934

1.560

77.212

2006

2.022

1.544

58.741

2007 2007-2013 – a queda no número de IES participantes do Fies pode ser creditada, dentre outros fatores, aos processos de fusões e aquisições de algumas faculdades, ou centros universitários e universidades pelas grandes instituições privadas fortalecendo o mercado do ensino superior privado, com a intensificação da atuação do setor mercantil e do capital estrangeiro.

2.032

1.459

49.049

2008

2.016

1.332

32.384

2009

2.069

1.318

32.654

2010

2.100

1.474

71.611

2011

2.081

1.528

153.566

2012

2.112

1.432

375.730

2013

DND Dado não disponível.

1.174

557.192

2014

DND

DND

732.243

FONTES: BRASIL. MEC. FNDE: Prestação de contas ordinárias anual: Relatório de Gestão do Fies (2013), 2014; Relatório de Gestão do FNDE (2014), 2015; VITURI, 2014.

Conforme relatório de gestão do Fies, apresentado pelo MEC, verificou-se no ano de 2012 um período de consolidação do Fies “e a consequente expansão do acesso e permanência no ensino superior”. No referido ano, o número de novos contratos representou “um aumento de mais de 138% em relação a 2011, cujo número de contratos foi de 153.566” (BRASIL. MEC. FNDE, 2012, p. 6-10).  No ano de 2014, o FNDE apontou que “dentre os créditos extraordinários de maior vulto, destaca-se o recebido pelo Fies no valor de R$ 10.300.000.000,00 (dez bilhões e trezentos milhões) solicitado devido ao fato de a dotação orçamentária alocada na Lei Orçamentaria Anual (LOA) 2014, cerca de R$ 1,5 bilhão” (BRASIL. MEC. FNDE, 2015), não ser suficiente para arcar com os novos financiamentos, com os aditamentos dos financiamentos já contratados e com os contratos de anos anteriores para os quais não ocorreram repasses.

Em 2013, no governo Dilma Rousseff, o programa atingiu a marca de um milhão de contratos firmados, o que foi inclusive motivo de comemoração com divulgação em inúmeros e diferentes meios de comunicação de massa e em sites do Governo Federal. A cerimônia celebrativa, realizou-se no dia 22 de agosto de 2013, no teatro do Serviço Social do Comércio (SESC) da Vila Mariana, São Paulo, capital.

Além da presidente do Brasil, a celebração contou com a presença de Fernando Haddad, prefeito de São Paulo; do ministro da Educação, Aloizio Mercadante; de Michel Temer, vice-presidente do país; dos presidentes da União Nacional dos Estudantes (UNE), do Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Inúmeros representantes e mantenedores deIES privadas, bem como uma centena de estudantes que compõem o quadro discente dessas IES, por meio do Fies, participaram da comemoração.

Em seu discurso, proclamou a presidente: “de acordo com a última informação que obtive, além deste milhão, já temos mais 33 mil estudantes cadastrados. Ao perceber que este número cresce a cada dia, percebemos que a frustração das pessoas que tinham o sonho de cursar a universidade (e não conseguiam) está sendo sanada”. Alimentando sonhos e instigando corações, continuou a presidente: “o diploma do curso superior melhora para pessoas e para o País as condições de disputa do mercado de trabalho” (BRASIL. MEC. FNDE, 2013).

Bem observado pela presidente e, talvez, pouco percebido pelos discentes, “melhora as condições de disputa”. Contudo, melhorar “as condições de disputa” não é sinônimo de emprego garantido e de salário condizente e, por isso mesmo, de condições financeiras para honrar com o compromisso da dívida; melhorar “as condições de disputa” tão pouco é sinônimo de qualidade do ensino que é oferecido e da aprendizagem alcançada, mesmo que a qualidade seja condição para que se ganhe uma disputa frente à concorrência acirrada por uma vaga no mercado de trabalho formal, principalmente às camadas menos favorecidas da população. Para melhorar “as condições de disputa” é preciso uma atenção muito maior ao ensino que é oferecido do que o zelo às isenções tributárias e, por conseguinte, ao aumento do capital econômico por parte das IES privadas e do alcance de metas pelo governo federal.

Na comemoração, a presidente anunciou ainda que sua meta é chegar “6 milhões de financiamentos”. Fiéis do Fies, os alunos, e especialmente os empresários educacionais, apoiaram a líder na Nação e vibraram fervorosamente. Afinal, a meta anunciada contribui na consolidação de uma universidade sem inadimplência e com uma quantidade cada vez mais repleta de alunos. Uma forma de socorro ao setor educacional empresarial que influencia diretamente na expansão do sistema da educação superior por meio do crescimento das matrículas na iniciativa privada/mercantil (SGUISSARDI, 2009) na venda de educação-mercadoria. Fato que, favorece os empresários do setor ao permitir que estes regularizem sua situação fiscal mediante adesão ao programa; ao possibilitar uma previsão econômica; ao contribuir com a estabilização da evasão e da inadimplência, fatores determinantes para a realização da lógica do capital, a saber: o pagamento da mensalidade é garantido pelo governo federal e a permanência é incentivada por parte das IES junto aos alunos, com vistas a garantir maior número de estudantes ao longo do curso viabilizando, desta maneira, a continuidade do convênio e, principalmente, a rentabilidade dessa atividade econômico-acadêmica.

Com a estabilização financeira propiciada pelo Fies, “a escola-empresa tem como planejar melhor seus investimentos, gastos, desempenho” (MORAES, 2013, p. 3), sucesso e estabilidade empresarial. Por meio desse sistema público de empréstimos estudantis, uma margem generosa de lucro está garantida aos empresários do ensino. Dinheiro público, lucro privado. Lucro garantido para uns, divida para outros. Por seguir a lógica do mercado financeiro, o financiamento estudantil, garantido pelo poder público, passa a ditar o ritmo da vida do indivíduo-aluno, de tal monta que seu “coração pulsa” no mesmo compasso das dívidas mensais que ele tem que pagar pelos serviços educacionais.

Da quantidade de alunos beneficiários do Fundo, “82% têm renda familiar de até cinco salários mínimos e 78% têm renda de até 1,5 salário mínimo per capita”, conforme noticiado no Portal do FNDE em 10 de janeiro de 2014 (BRASIL. MEC. FNDE, 2014).

Com essa média salarial, parece grande a probabilidade de inadimplência e, por conseguinte, de endividamento. Probabilidade que se intensifica ainda mais se considerado que “após a conclusão do curso, nem todos os estudantes ingressam imediatamente no mercado de trabalho, ou possuem uma renda capaz de assegurar as despesas básicas familiares e o financiamento”. Ou seja, “apesar da expectativa de aumento na renda, gerado pela conclusão do ensino superior, na maioria dos casos esse incremento não ocorre de imediato” (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2009, p. 57). Na contramão, o valor da parcela das semestralidades para as IES privadas, está garantido.

Na medida em que aumentam o número de contratos firmados, evolui também a inadimplência dos alunos com o Fies, ao tempo que a adimplência nas IES privadas aumenta. Fato que, nas palavras de Rodrigo Capelato, “reflete bem como o Fies se tornou uma grande oportunidade para as universidades". Posto que, “além de o financiamento atrair novos alunos, ele traz segurança. Com o Fies, a universidade recebe os repasses diretamente do governo federal e não corre o risco da inadimplência”, afirma Capelato em entrevista ao Jornal Tribuna da Bahia (2014). Como dispõe mensagem divulgada pela CEF “o Fies também apoia as instituições de ensino superior, que passam a ter garantido o recebimento da parcela financiada pelo Programa” (s/d).

Lucro garantido para IES; combustível que desperta cada vez mais o interesse pelo setor privado de educação superior e dívida certa para os alunos, cuja procura pelo ensino superior se intensifica a cada dia em busca da realização de um sonho: cursar uma graduação.

À GUISA DA CONCLUSÃO

O Fies pode ser caracterizado como um programa de acesso e inclusão ao ensino superior que atende, ao mesmo tempo, dois segmentos opostos da sociedade: às necessidades de apoio financeiro das instituições; e aos sujeitos-alunos, das camadas econômicas, social e educacionalmente mais carentes da população, que não conseguem acesso às universidades públicas e têm dificuldades para pagar seus estudos na rede privada.

O Fies é uma parte da engrenagem econômica atual. Primeiro, porque abre-se o crédito aos estudantes objetivando que se formem, consigam um emprego e paguem de volta, fazendo movimentar um círculo que levará outros à universidade e, talvez, a uma colocação no mercado de trabalho. Na prática, porém, a história mostra-se bastante diferente, pois as dívidas e os índices de inadimplência têm deixado suas marcas nesse tipo de programa implementado no Brasil. Segundo, mesmo que com baixos salários, representa a possibilidade de mais emprego tanto para pessoal docente como para pessoal não docente (administrativo, bibliotecário, pessoal da limpeza, da segurança), pois de alguma maneira, ainda que possa ser precária, as IES precisam atender a demanda de alunos. Terceiro, e talvez, mais evidente e acentuado, porque as condições ultravantajosas do Fies, as quais garantem a lucratividade e risco zero para as IES privadas, estimulam e favorecem as negociações e fusões entre as IES privadas.

No período analisado, de 2010 a 2014, para as IES privadas o Fies representou a possibilidade de expansão e de acumulação de capital por meio e a partir das credenciais educacionais, ainda que a custa do endividamento de alunos e em detrimento da qualidade do que é oferecido. No cenário das IES privadas, cujas receitas nesse período foram em grande monta originárias do Fies, ocupa lugar de destaque a lógica da competição, a eficácia típica do mercado e do lucro em detrimento da qualidade da educação oferecida, uma qualidade duvidosa, não obstante a existência de processos formais de avaliação realizados sazonalmente pelo MEC. Como em toda sociedade capitalista, o valor econômico sobrepõe-se aos ditames da igualdade e justiça social. Para os alunos que aderiram ao programa, na apropriação da realidade a partir do que é possível, o Fies é visto como uma oportunidade de matricularem-se em uma faculdade privada; para muitos, talvez seja melhor a aquisição de um diploma mesmo que com dívida, do que nenhuma possibilidade ou o não acesso ao ensino superior. O Fies representa uma forma de realização de um sonho e alimenta milhares de pessoas com a ilusão da inclusão no ensino superior, com a promessa da igualdade conquistada por meio da inserção no mercado de trabalho e ascensão social.

Após as análises empreendidas, pode-se dizer que o Fies é uma política pública importante na promoção do acesso ao nível superior. Contudo, embora seja uma política pública, o programa originou-se, expandiu-se e vem se desenvolvendo em um cenário de ampliação da privatização do setor educacional. Desenvolvido nesse cenário, o Fies oblitera o papel do Estado na oferta direta da educação em nível superior e essa omissão possibilita as IES privadas usufruírem de um espaço que poderia ser ocupado pelo Estado, mas que contraditoriamente têm desse mesmo Estado o apoio e a concessão para administrá-lo. Ainda que promovida pelo Estado, pois propiciou o acesso a mais de 1 milhão de alunos na graduação em apenas quatro anos, não garante, porém, a inserção desses sujeitos no mercado de trabalho e tampouco as condições necessárias de assegurar um rendimento futuro para quitar a dívida assumida com o financiamento, conforme proclamado na legislação. É uma política que tem favorecido a manutenção do ensino privado e tem servido pouco para a elevação da qualidade da educação superior. Embora seja uma política pública, desenvolve-se prenhe de contradições, manifestas em princípios, processos e propostas que a evidenciam muito mais como elemento legitimador da centralização do capital que com a formação humana, intelectual e profissional dos sujeitos que se diz querer contemplar. Legalmente, e não obstante amparar-se nos princípios de igualdade, equidade e justiça social, traduz, contraditoriamente, um estratagema poderosocapaz de garantir trunfos políticos e ainda o enriquecimento econômico dos empresários do ensino, à custa do endividamento de muitos alunos que aderiram ao programa no período analisado.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR. Fies e ProUni já respondem por 31% de matrículas de universidades privadas. 11 mar. 2014. Disponível em: http://www.andifes.org.br/?p=25145. Acesso em: 19 abr. 2014.

BRASIL. MEC. FNDE.  Relatório de gestão do FNDE 2014. FNDE, 2015. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/fnde/institucional/relatorios/relat%C3%B3rios-de-gest%C3%A3o. Acesso em: 10 mar. 2016.

________. Prestação de contas ordinárias anual: relatório de gestão do Fies do exercício de 2013. Secretaria de Educação Superior, 2014. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15998-relatorio-gestao-exercicio-2013-fies-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 10 mar. 2016.

________. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 21 mar. 2015.

________. MEC. FNDE.  Fies supera marca de 556 mil contratos em 2013. Brasília, DF: Assessoria de Comunicação Social, 2014. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/fnde/institucional/perguntas-frequentes/perguntas-frequentes-financiamento/itemlist/tag/FIES%20%28Fundo%20de%20Financiamento%20Estudantil%29. Acesso em: 7 fev. 2014.

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